Por esses caminhos
O contato com o chão é uma faixa estreita, uns cinco centímetros, que se estende infinita. Ao invés das sincopadas pisadas dos pés, apenas deslizo. Enquanto pedalo, me equilibro sem sentir; por uma aprendizagem antiga, meu corpo sabe como alcançar um balanço exato que me permite estar segura e firme enquanto percorro as trilhas de asfalto e o rio, ao meu lado, me acompanha. Depois de algum tempo, em alguns trechos onde sei que não existem obstáculos, até mesmo o pedal acaba sendo esquecido: os movimentos compassados se tornam um ruído de fundo na mente e minha atenção se desloca para outro ponto. Todo o meu corpo trabalha para que eu seja apenas um olhar que acompanha o rio. Posso me apoiar para observar o horizonte como se estivesse em um parapeito e, nessa abertura frente a um panorama, o que faço não é propriamente pensar, com a intencionalidade que é comum a esse gesto, mas abrir-me a uma ocasião, a um ambiente em que sou visitada pelos pensamentos.
Me ocorre então que as primeiras imagens que se fixaram dessa cidade não foram as dos horizontes, do sol poente, mas as do burburinho de chegada e partida da rodoviária; ruído de motores, café com leite tomado com pressa, jornais de papel, o medo daquela noite escura que se estendia entre os viadutos. Por alguma razão que desconheço, os ônibus chegavam em Porto Alegre, na minha infância, sempre na madrugada. Depois, a cidade foi ganhando aos poucos outro perfil: conheci as ruas do centro, suas árvores, senti o cheiro da água e dos prédios antigos. Somaram-se outras camadas, mais amplas, densas, que se aderiram a esse núcleo primevo, a esse primeiro grão.
Quando desejei morar aqui pela primeira vez, tinha ainda menos de vinte anos. Esse não era um caminho obrigatório, mas certamente um dos que estão sempre ali, potenciais. No entanto, as cartas se embaralharam naquela década, para mim, de uma forma diferente. Nas vezes em que vinha a passeio, visitar amigos, passar alguns poucos dias, me via presa de um desejo incompleto, pendente. Anos depois, uma vez mais, nos pusemos frente a frente. Novamente, a moeda caiu para outro lado - ainda houve uma nova ronda antes que Porto Alegre e eu nos encontrássemos. Tínhamos desenvolvido ao longo dos anos uma relação enamorada e escapante, e agora, aqui, contemplávamos enfim uma à outra.
No início, logo ao sair, nunca sei exatamente até onde vou. Muitas vezes, convenço a mim mesma que é apenas uma saída exploratória, para não perder o hábito, “para não esquecer como se pedala” - como se dependesse de prática o que se inscreveu na memória do corpo há tanto tempo - e termino cruzando os limites do que conheço. Noutras ocasiões, tenho propósitos ambiciosos de quilometragem e, por motivos variados, o trajeto se torna em um passeio displicente: me interesso por uma cena que entrevejo em uma casa, sinto uma súbita sede e sou obrigada a mudar o caminho, paro muitas vezes para tirar fotos que frequentemente se revelam, vistas à luz de outro estado de espírito, insuficientes, longe de estarem à altura do que se queria registrar - o sentido de uma foto vem, nesses casos, daquilo que foi percorrido, uma determinada sequência feita até alcançá-la e seria necessário ter visto tudo que o olhou viu para, então, enxergar algo ali. Se aparecem soltas, gratuitas, essas imagens não podem entregar senão uma banalidade: marcas em um muro, vegetação costeira, um trecho de casas contíguas, o contorno de um terreno baldio.
Na nova casa, descubro gradativamente os lugares onde o sol alcança e em quais horários. Vejo entrar pela janela um pedaço de luz ainda desconhecido, uma parte do poente que se esgueira por entre os prédios e entra pela sala, deixando um feixe de contorno alaranjado. E o vento, vento cruzado, vento do rio que faz sucumbir portas e janelas, cuja presença entendi, já nos primeiros dias, que frequentaria sempre a casa. Pouco a pouco, se revelam também os ruídos das janelas, os horários e o aroma dos almoços, a rotina dos terraços, as passagens pelo corredor. Durante todo o primeiro ano, será assim: até que o sol dê a volta completa do ano.
Enquanto percorria um trecho, em um dia desses de céu azul intenso, me recordo que meu pai morou em Porto Alegre durante boa parte da década de 70. Lembro de alguns comentários dele sobre ruas do Centro, de acontecimentos daqueles anos, algumas músicas - sempre sua maior referência - os primeiros tempos na Companhia, um fatídico incêndio. Onde ele teria, então, morado?, me pergunto enquanto tenho a impressão de avistar a cidade inteira, em um horizonte que se abre após uma curva. Tento resgatar uma conversa, uma história, vasculho a memória e ouço mentalmente sua voz contando algum episódio; porém, como acontece quando são lembranças tão afastadas no tempo, já não consigo definir bem seus contornos: embora essa lembrança tenha sua voz, aquela voz que tenho gravada em mim, já me dei conta que, algumas vezes, algumas frases impostoras se vestem com esse timbre dentro do meu pensamento. Frases que nunca foram ditas, que talvez circulem pelos mesmos caminhos mentais ou tenham sido inventadas no exato momento em que as ouço dentro da minha cabeça. De todas as manifestações que percorri, ao longo do processamento da sua ausência, as lembranças imprecisas seguem sendo as que têm maior potencial de desorientação: questionam a própria capacidade de lembrar e põem em cheque a integridade daquilo que é a única coisa que pensamos ter daqueles que já não estão aqui.
Penso em quem poderia recorrer para conseguir a informação sobre onde ele teria morado. Minha mãe não sabe dizer; ainda não se conheciam, naquela época. Sabe apenas informações desencontradas desse período em que ele morou na cidade. Segundo me contava aquela voz, um dos meus tios teria morado com ele nesse período. Minha mãe confirma, me sinto confiante e me proponho - como noutras ocasiões - a atravessar os corredores das relações familiares distanciadas ou quebradas para obter uma informação simples, um endereço, um ponto de referência.
Uma semana depois, com o endereço em mãos, tomo o caminho a pé para as ruas do núcleo central mais denso. Me pergunto, daqueles comércios, daquelas construções, quantos estariam iguais àqueles de cinquenta anos atrás - provavelmente, quase nenhum. Parada em frente ao prédio, um edifício de cinco andares visivelmente castigado pelo tempo e só parcialmente habitado, me vejo ansiosa e comovida. Como se pudesse, ao entrar ali, encontrá-lo aos vinte e poucos anos, dividindo o apartamento com alguns amigos da cidadezinha do interior de onde vinha. Como se houvesse algum encontro possível ao me deparar com um endereço e um edifício, em um bairro que não é mais o mesmo. A noite começa a cair e retomo rapidamente o caminho de volta, pensando que tudo isso tem algo de delirante e sentimental demais.
Se o vento vem forte em sentido contrário, o corpo precisa mais que redobrar o esforço. Acho curioso que, quando caminho, não sinto tanto a ação dessa força. É como se a leveza da bicicleta me tornasse mais suscetível ao ar. Provavelmente, a verdade da física não é essa, mas a explicação parece, na medida que a formulo, extremamente lógica. Quando a força muda de direção, e não é mais preciso me contrapor a ela, tomo um descanso. E sem perceber, minha mente desliza e retorna para a mesma porta, refaço aquele mesmo caminho. Ao contrário do sentimentalismo ou do gesto insano, abandono a autocensura para pensar agora em outra possibilidade, em um desejo difícil de apagar: o de trazer para uma realidade a presença de alguém que, ano a ano, se distancia como um ponto no horizonte. Meu pai, que não viu as últimas eleições, nunca conheceu a palavra Covid-19, que não faz ideia que a Estrela da sua infância foi devastada pelas águas, que não sabe que moro, agora, em Porto Alegre. Mas há algo que possa, talvez, ser resgatado: o gesto de percorrer uma cidade, uma mesma cidade; uma forma de proximidade que nos vincula a alguns lugares, a determinadas ruas e esquinas, à existência do que é mais sólido e que supera a fragilidade do corpo, ao mesmo tempo em que abriga, de algum modo indetectável, algo de volátil, etéreo, deixado por quem circulou ali. Um vínculo fora das linhas do tempo, mas que, ainda assim, define um tipo de encontro, de confluência.
Depois de enfrentar um pouco o contato com o trânsito e os cruzamentos, em umas poucas quadras já estou por alcançar minha rua, a garagem onde devo pendurar a bicicleta está a alguns metros. Mas a noite é quente, me refresco enquanto a bicicleta se move; meu corpo está tão aquecido que se nega a parar. Passo pela frente do meu prédio como se não morasse ali e fico girando pelos arredores, hesitante. E ali, naqueles volteios na rua, enquanto levo ao limite meu equilíbrio para curvas fechadas, estou muito distante de algo como esporte ou contemplação, mas sim de um jogo infantil de fazer tempo, de aproveitar até o último minuto e negar a hora de parar. Só me detenho quando canso, desisto: volto enfim para a dureza dos pés no chão e para os pensamentos práticos e correntes. A bicicleta ingressa então em sua etapa dormente, descansa e aguarda a próxima ronda, que não deve tardar.