Ronda
Um mandarim estava enamorado de uma cortesã. “Serei tua, diz ela, quando passares cem noites me esperando sentado num tamborete, em meu jardim, sob minha janela”. Mas, na nonagésima nona noite, o madarim se levantou, pôs o tamborete embaixo do braço e partiu.
(Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso)
Embora já em decadência, ainda vigorava, no alvorecer dos anos 2000, a prática do enamorado que espreitava a casa. Passear pelos arredores, escolher trajetos para gerar encontros ou, deliberadamente, postar-se visível, como sentinela. Para mim — então com doze ou treze anos — era algo absolutamente estranho e inesperado.
A primeira vez que o vi sentado nas escadas da casa da frente, achei que fosse casualidade que um conhecido do clube, com quem tinha trocado algumas palavras na piscina e, só agora me lembrava, percorrido parte do caminho para casa, estivesse ali. Desci as escadas de casa com minha mãe — íamos ao mercado, ou buscar alguém — e ele se levantou e me saudou, com um tom que me pareceu cerimonioso. É que ele gosta de ti, me explicou ela, segurando o riso, enquanto nos acomodávamos no Corsa bordô 97 que dirigia.
Logo a presença foi notada por todos na casa, que riam e repetiam: olha ali, esperando por ela. Certo que a abordagem me envaideceu e admirei, com sinceridade, o que tinha algo até de heroísmo. Os guris do meu colégio eram, mais do que tímidos, certamente mais preguiçosos. As paixões eram anunciadas sempre de modo indireto, pedia-se que um amigo intermediasse, havia um complexo sistema de advocacia e tramitação tortuosa. Aquilo, no entanto, me parecia exagerado. Sentia vergonha que algo íntimo, secreto, se tornasse uma questão familiar e, não tardaria, também de vizinhança: eu sabia que o vizinho não gostava que se sentassem naqueles degraus.
Sentia também, e não menos, pena. Por que não ia embora depois que eu o cumprimentava, por que ficava? Um dia, espiei por entre as madeiras da veneziana, para ver se, mesmo depois do cair da noite, permanecia ali; de imediato ele reagiu, levantou os ombros, alerta. Fechei a janela, assustada.
Para completar, passou a não vir sozinho. Trazia sempre um ou dois amigos, com quem conversava ruidosamente durante o período de guarda. Às vezes riam muito alto, eu podia ouvir do meu quarto, no segundo andar, cuja janela dava para a calçada. Os amigos demonstravam certa impaciência: lembro de um deles gritando meu nome, apaixonado vicário, como quem rogasse que aquilo tivesse um fim.
Minha indiferença parecia, aos poucos, irritá-lo. Passou a me cumprimentar contrariado, aparecia menos. Resolvi suspender até mesmo meu “oi” sem entusiasmo, medida final, definitiva.
Naqueles anos, início da internet, os provedores enviavam CD ‘s gratuitos de instalação que passaram a abarrotar os correios e se tornaram um spam. Foi em um desses — imagino que pescado por não estar totalmente inserido na caixa de correspondência — que um dia, depois de outro incidente de silêncio, ele deixou sua última mensagem. Em um gesto que unia raiva e paixão, escreveu, à mão, um ‘eu te amo’ com letra apressada em uma embalagem de um CD do América Online, que arremessou em direção à janela e terminou pousando no chão do meu quarto. Apelação aérea, performance final; depois disso, não foi mais visto.⧫